sexta-feira, 4 de junho de 2010

Assombro

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O que me assombra? No momento em que escrevo é esta quarta-feira. Exatamente por já ser ela a metade da semana, por já ser metade do ano, por ter decorrido mais da metade do tempo que tenho pra viver. Em suma, metade de tudo...

Escrevi “tempo pra viver?” Será que dá para brincar com isso, deixando Deus à margem e todas as leis que regem o universo criado por ele, tomando as rédeas da contagem dos dias que ainda me faltam?

A questão é: se isso fosse possível para mim e para todos, o que faríamos exatamente? Qual seria a nossa primeira reação? Prazer por termos poder para ampliarmos o prazo? Uma melhor consciência de como aproveitarmos melhor o tempo que nos resta para fazer coisas úteis, boas e realmente importantes?

 

assombro - cronica ilustração

O tempo passa mais depressa que nossas expectativas em relação às etapas da vida. E das quais não conseguimos fugir por mais que tentemos burlar a receita prescrita: nascimento, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice e morte.

Embora na juventude possamos pensar no tempo como algo infinito, a verdade é que ele é uma viagem sem volta a cada segundo.

Alias, pensando melhor, tudo na vida tem apenas tickets de partidas sem regressos. Mesmo quando achamos que podemos voltar atrás para nos desculpar com quem magoamos; ou quando tentamos retomar a atenção que negligenciamos quando envoltos no emaranhado das atribuições cotidianas... Quando não encontramos tempo para ir ao encontro do nosso melhor amigo. Quando deixamos tudo para o outro dia, e deste dia para o outro, parando apenas quando sacudidos pelo inesperado – não tão inesperado assim – de que ele já não está mais lá para nos receber com o seu abraço afetuoso, com suas palavras confortadoras, com seu sorriso largo!

 

swallows

O tempo não perdoa nem rebobina o filme para rostos bonitos e corpos esculturais, por mais que a medicina estética avance. Essa inconformidade na aceitação da passagem do tempo só gera arremedos de belezas de outrora, que poderiam continuar sendo belos somente sob um novo olhar.

Rugas e linhas de expressão podem tornar rostos tão belos quanto os de vinte e poucos anos, porque são talhadas pelas experiências de vida e sabedoria.

Quem não repara nos excessos de botox em lábios engraçadamente revirados; nas bochechas salientes, redondas e rosadas quase prestes a explodirem? Ou não olha de soslaio para os seios absurdamente empinados e siliconizados da senhora com mais de 70, na fila do caixa no supermercado?

Na verdade, meu maior assombro da semana foi chegar ao restaurante ontem e saber que a gerente, 27 anos e mãe de um bebê com seis meses, havia morrido no início da manhã, saindo de casa para o trabalho, de repente... Do coração...

E ela nem estava na metade do tempo de vida que poderia viver.

Rosane Leiria Ávila

Publicado no JORNAL AGORA

www.jornalagora.com.br

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Os pombos



Enquanto fazia um lanche no horário em que todos – ou quase todos – almoçam, sentada em um banco de uma praça, de repente minha dispersão foi interrompida por três pombos.
Como quem não quer nada, eles lentamente começaram a se aproximar. Ainda que desconfiados, a curiosidade deles parecia ser maior do que o receio de uma reação hostil de minha parte. E o interesse também. Afinal, fosse pelo cheiro do lanche ou pelas íntimas migalhas caídas no chão, o fato é eles resolveram apostar, mesmo sendo eu um ser estranho.
Inicialmente, não mexi um dedo nem fiz nenhum gesto amigável. De propósito, lógico, no intuito de instigá-los e, dessa forma, melhor observar seus comportamentos. Depois, devagar fui esticando as pernas. Um, que já estava mais próximo, recuou estrategicamente. E, sabem? Olhou diretamente para mim. Sei que posso parecer doida, visionária, sei lá... Ainda mais porque foi diretamente para os meus olhos.
Ali ficou quieto, apenas piscando e esperando um gesto meu. Nada. Eu me divertia com o fato. Com a minha aparente inércia, os outros começaram a se aproximar, devagar.
Pelo visto, o que estava mais próximo e me observava era o chefe. E a um sinal seu, os outros se aproximariam ou se afastariam.
Resolvi fechar os olhos para ver o panorama mudar quando os abrisse. Estava tão certa de que isso mudaria, que quase apostei intimamente. Certa? Claro que sim! Agora, ele, o chefe, estava no banco ao meu lado. E os outros dois praticamente nos meus pés.
Deslizei, o mais devagar que pude, as migalhas que estavam no guardanapo. O pombo no banco começou a comê-los. Depois, ao invés de ir embora, aproximou-se mais. Ora, pensei, teria ele visto em raio-X que em minha bolsa havia outras coisas que o interessavam?
O tempo havia se esgotado e eu precisava retornar. Levantei-me no mesmo instante em que ele voou. Mas, pelo visto, não queria apenas as migalhas do meu lanche, pois começou a caminhar à minha frente no passeio de areia da praça em direção à calçada, simulando um bailado como se estivesse fazendo um convite a uma estranha amizade.
Só levantou voo quando acelerei o passo, acenando para o ônibus que se aproximava do meio fio.
Voltei à mesma praça e ao mesmo banco no dia seguinte. Desta vez, com um pacote de guloseimas especialmente atraentes para pombos.
Foi só sentar e aguardar poucos minutos de olhos fechados, pois tinha certeza de que quando os abrisse, ele estaria lá.
E estava. Agora, de segundas as sextas, temos encontros agendados.
Rosane Leiria Ávila
Jornal Agora



Nossos sonhos



Uma amiga revelou-me que não sonha. Nunca sonha. Bobagem. Ela sonha só que não consegue se lembrar depois. Ela também ficou escandalizada quando lhe devolvi em confidência: “Eu sonho todas as noites e em muitas, mais de um sonho. Também costumo anotá-los e alguns acabam até virando crônicas”.
Minha mãe, por exemplo, sempre gostou de decifrar sonhos. Seus e os das filhas, das netas... Ou pelo menos tentar. Por conta disso, quando pequena ficava fascinada achando que ela podia olhar nossas cabeças enquanto dormíamos, como uma bruxa olha sua bola de cristal.
Sonhar é muito bom mas também muito íntimo. Não podemos sair por aí contando nossos sonhos. Segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud  (1856 – 1939), à medida em que o ego adormece, afrouxavam-se os laços do sensor liberando o acesso aos nossos impulsos mais reprimidos e linguagens inconfessas.  Dizia também que sempre costumamos sonhar entre as 6h e às 8h, de três a cinco vezes, e praticamente de 90 em 90 minutos. Concordo com a quantidade, mas juro que os meus começam tão logo adormeço.
Já o Carl Jung (1885 -1960), que estudou os sonhos por mais de dez anos, concluiu que eles são uma porta de acesso a outras dimensões. Todos os personagens, emoções e situações remetem a uma jornada onírica como ser.
Jung trabalhou inicialmente com Freud na pesquisa dos sonhos. Um dia, exaustos, adormeceram e sonharam. Foi quando descobriram que o sonho está dividido em cinco partes: a RAM, a REM, a RIM, a ROM e a RUM. Depois de algum tempo, eles se dividiram em suas interpretações ao sonho.
Os sonhos tentaram ser interpretados já na antiga Grécia. Em tempos mais recentes, a psicoterapia tem três correntes: Freud, Yung e Erich Fromm. Este último defende que questões econômicas influem na capacidade dos indivíduos sonharem. E define: "Nosso Eu, como ser social, e a sociedade influenciando no meu sonhar".
Eu, particularmente, aceito e gosto da definição de sonho pelo Xamanismo: "Os nossos sonhos pertencem a um tempo e a um espaço". Filosofia de vida muito antiga, seus os ensinamentos baseiam-se na observação da natureza e seus sinais: sol, lua, terra, água, fogo, ar, animais, plantas, ventos, ciclos, enquanto que seus objetivos básicos são reconectar o ser com sua sabedoria interior.  
Para mim, está perfeito.
Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora
www.jornalagora.com.br