sábado, 9 de outubro de 2010

Migração




Não sei se é cíclico, mas de tempos em tempos bate a necessidade de uma faxina sem dó nem piedade, arejando todas as frestas, todas as lembranças. Todos os guardados.
No último feriado, as centenas de publicações de jornais guardados com tanto cuidado foram a bola da vez. Olhei para o armário apinhado de papel. Por mais cuidado com desumidificador, o cheiro de mofo depois de um inverno chuvoso podia ser sentido tão logo a porta é aberta.



Olhei para o notebook: dois HDs com capacidades de armazenamento para muito mais do que o armário guardava. Além disso, a tomada de decisão se moveu pela ‘tecnologia das nuvens”. Se os arquivos armazenados no disco físico viessem a sofrer algum dano, sempre haveria o armazenamento na rede. E que pode ser acessado em qualquer lugar do mundo e a qualquer hora.
Então, pensei, para que colecionar papel se até mesmo a busca a um determinado assunto é mais rápido e eficaz através do computador? Passar tardes folheando papel à procura de um texto? E algumas vezes se frustrar? Pura doidice.


Olhei para o notebook: dois HDs com capacidades de armazenamento para muito mais do que o armário guardava. Além disso, a tomada de decisão se moveu pela ‘tecnologia das nuvens”. Se os arquivos armazenados no disco físico viessem a sofrer algum dano, sempre haveria o armazenamento na rede. E que pode ser acessado em qualquer lugar do mundo e a qualquer hora.
Então, pensei, para que colecionar papel se até mesmo a busca a um determinado assunto é mais rápido e eficaz através do computador? Passar tardes folheando papel à procura de um texto? E algumas vezes se frustrar? Pura doidice.


Li em algum lugar que alguns pais e professores estão preocupados porque os jovens estão preferindo acessar a internet para pesquisas nos estudos. Isso é praticamente um adeus declarado às barsas, britânicas, atlas, almanaque...
Mas por que a oposição deles? Para que resistir se existe uma que, ao contrário das tradicionais, é gratuita, interativa e traduzida atualmente para 205 idiomas? A Wikipédia, dos americanos Jimmy Walles e Larry Sanger criada em 2001 rapidamente se tornou uma das páginas mais acessadas da Internet, com 1,6 milhão de verbetes e 3,1 milhões de artigos. Se é confiável? Especialistas compararam 50 artigos da Wikipédia com 50 artigos da Enciclopédia Britânica e encontraram um empate técnico de quatro erros nas duas. Ressalte-se que a Britânica é a mais conceituada enciclopédia convencional do mundo.


Porém, se a conclusão foi fácil, levada a feito tornou-se quase nostálgica. Além disso, a migração para o armazenamento tecnológico engoliu boa parte do meu feriadão.
Entretanto, o pior ainda estava por vir: o adeus, no dia seguinte quando o caminhão do Lixo Limpo chegou para recolher as pilhas de jornais colocadas na calçada. Fiz um minuto de silêncio num adeus quase solene a muitos anos de cumplicidade entre leitura e leitor.
Acompanhei o caminhão quase até ele sumir no declive do fim da rua. Mas quando subi os dois lances de escada sentia-me leve e já fazendo planos para o armário vazio. Ou melhor, para o vazio sem o armário, que agora seria desnecessário.

Rosane Leiria Ávila 

domingo, 8 de agosto de 2010

Intervenções urbanas


Você sabe o que são flash mobs? Até bem pouco, eu também não sabia. Essa nova informação – pelo menos pra mim - estava em minha caixa de correspondência há alguns dias. Flash mobs são propostas para despertar o olhar e a mente automatizados pela rotina estressante das grandes cidades. Algumas manifestações são previamente combinadas pela internet.


Levantando bandeiras sociais, comportamentais e ambientais, os flash mobs promovem o encontro de desconhecidos unidos em torno de uma causa, imbuídos por um esforço nobre que procura reverter o isolamento das pessoas.


Desconhecido não só para mim, mas também para a grande maioria das pessoas, tem conquistado cada vez mais adeptos.

 
O primeiro desses movimentos é em relação aos livros. Segundo o idealizador do projeto “Livro Livre”, Felipe Meyer, “livros não são objetos de decoração e devem percorrer um caminho”. Por conta disso, o paulistano passou a se deparar com livros propositadamente esquecidos por alguém em bancos de praças ou pontos de ônibus.


O conceito é inspirado no projeto Bookcrossing, criado em 2001 nos EUA. Ao todo, conta com 600 mil participantes em cerca de 130 países. Lembro de uma reportagem apresentada por Ana Maria Braga sobre um movimento semelhante há uns dois anos. Pena que de lá para cá, as atitudes nesse sentido no Brasil ainda sejam tímidas, pois o movimento esbarra em entraves econômicos e sociais.



Gentileza às escuras


O segundo movimento é o Café do Próximo, uma corrente surgida há três anos na qual o cliente deixa pago também um cafezinho para o cliente seguinte, o qual desconhece totalmente.

Motivada, a dona de um café na Vila Madalena, em SP, Beth Guido, resolveu acatar a sugestão do psicólogo Marcos Fleury, que conhecera a prática na Livraria Argumento, no Rio. “Pagar o café para alguém é uma demonstração simbólica de afeto”, define ela. Para o psicólogo, por meio dessa gentileza às escuras os adeptos também se aproximam das outras pessoas, mesmo que não conheçam seus rostos.


Embora tenha quem ainda se surpreenda com a proposta do estabelecimento, a lousa gasta onde ficam anotados os cafés ofertados gratuitamente, é prova do sucesso da ação.



Iluminação urbana


O terceiro flash mobs é o batizado de “Iluminação Urbana”. Em trajes sociais, as transeuntes vão se juntado à meditação do grupo Influenza (nome dado numa paródia ao do vírus H1N1), em plena Avenida Paulista. A meditação é feita na hora do rush para chamar a atenção das pessoas, valendo-se do silêncio em meio à balbúrdia de final de expediente. “Ao invés de lutarmos por uma revolução externa, buscamos uma revolução interna: a tranqüilidade em meio ao caos”, justifica o artista Alexandre Paulain, um dos criadores do grupo Influenza.


A prática da meditação geralmente está associada a imagens de ambientes zen, por exemplo. Imaginar-se algo assim em meio a um caos urbano é, no mínimo, estranho. Mas essa intervenção pacífica está sensibilizando não só participantes e pedestres: até mesmo menores de rua que, em paz, aproximam-se do grupo.

São pequenas atitudes revestidas de grandes gestos, mas capazes de tornar a vida melhor em qualquer lugar e a qualquer hora.

Rosane Leiria Ávila


Publicada no Jornal Agora  wwww.jornalagora.com.br- 25 de julho de 2010

Roupa para a alma


Nesta semana de temperatura extremamente gélida, algo me lembrar de minha infância - ele mesmo, o frio. Resgatado por uma prática assumida em momentos de crise: a de colocar a roupa que vou vestir próxima a uma estufa para aquecê-la. É uma sensação muito agradável... Parece um carinho!

Na verdade, é um carinho. Na minha infância, o de minha mãe que, zelosa ou temerosa que eu ou minhas irmãs ficássemos doentes no inverno, tinha o costume de esquentar as roupas que vestiríamos após o banho, quando pequenas. Ou mesmo não tão pequenas, porque bastava que estivéssemos um pouco resfriadas e o velho ritual já era colocado em voga.



Não sei se ela ainda se lembra disso. Mas eu sim, e reeditei o velho costume neste inverno que, para o meu desconforto, ainda está longe do fim.


- Tem feito muito frio, até mesmo para um gaúcho, segredou-me um velho senhor dividindo comigo o estreito balcão de uma cafeteria apinhada de gente, na tarde fria da última quinta.

- Ou talvez porque a temperatura no inverno tenha se elevado e as próprias estações por vezes fiquem indefinidas, é que sintamos tanto quando voltamos aos tempos de invernais de outrora, com imagens de geadas nos campos, de sensações doídas de vento como navalha na pele, ilustrou ele a sua própria afirmação.

- Mas o frio tem o seu lado bom, retrucou uma mulher, atenta à nossa conversa de balcão. “Estamos aqui bem agasalhados, tomando um cafezinho fumegante muito gostoso. Em minha opinião, todos ficam mais elegantes no inverno. Há prazeres que o verão nos rouba”, completou.


O interlocutor olhou para ela e sua vontade de faltar com o respeito que o avanço de idade permite, quase aflorou. Mas se conteve e conseguiu lhe perguntar, entre dentes:


- A senhora olha à sua volta quando sai à rua? Percebe os que dormem nas calçadas? As crianças? Os animais? Enquanto abrigada confortavelmente em suas roupas consegue pensar naqueles que poucas têm para se cobrir? Que se vestem com trapos e farrapos? E que, além disso, também não podem tomar um café quente ou fazer uma refeição mais calórica?

A essa altura, além de nós dois, a conversa passou a interessar quem estava em volta.

A mulher ficou em silêncio, sorvendo os últimos goles de seu café. Depois, vagarosamente pousou a xícara sob o balcão, pegou as luvas dentro da bolsa e começou a vesti-las, sem pressa. Deduzi que o café já estava pago porque ela deu alguns passos em direção à saída, parando na frente dele.

- Não julgue nem acuse sem o conhecimento da verdade. Para onde o senhor vai quando sair daqui?

- Ora, vou para casa assistir tevê. Reunir-me com a família e, mais tarde, tomar uma deliciosa sopa no pão, especialidade de minha mulher. Acompanhada de um bom cabernet, é claro. Mas o que isso tem a ver com a nossa conversa?



- Quase nada... Nada mesmo. Só que daqui eu vou me encontrar e trabalhar voluntariamente com um grupo que socorre pessoas em situações de risco por causa do frio. Distribuímos roupas para o frio e para a alma. Além de café quente e lanche.


Depois disso, virou-se e saiu. Silêncio e sorrisos amarelos. Quase todos fazendo um ‘me culpa’ e pensando em suas próprias atitudes. Ou na ausência delas.

Rosane Leiria Ávila
Publicada no Jornal Agora http://www.jornalagora.com.br/- 17 de julho de 2010

Insights e sonhos


Escutei o relato abaixo durante uma palestra há algum tempo e rabisquei num bloco que resgatei esta semana.


A mulher tinha o mesmo sonho durante muito tempo em sua vida: estava na frente de um templo junto com um grupo, mas não pertenceia a ele. Depois de uma breve combinação, o grupo entrava, mas ela não. Não entrava porque tinha medo. E tinha medo porque sabia que estava morta e o seu corpo estava enterrado lá dentro.

 
Anos mais tarde, ela, professora de artes plásticas, acompanhou o marido, também professor, em um estágio na Espanha. Numa tarde, enquanto o marido estudava, ela resolveu caminhar sem um destino definido. E de repente, viu-se diante de um templo. Para sua estupefação, o mesmo que aparecia em seus sonhos. Na frente do prédio, um grupo de turistas que se reunia à volta do guia para acertar detalhes da visita ao local.


Ela se sentiu como se estivesse pregada ao chão. Paralisada pelo medo, não teve coragem de entrar com o grupo. Todos entraram, mas ela ficou ali durante um tempo que lhe pareceu interminável. Fechou os olhos e sua mente começou a mesclar imagens lá de dentro com a rua onde ela estava. Durante um longo período ela ficou parada decidindo o que deveria fazer. Receava que assim como o sonho lhe mostrou, seu corpo estivesse enterrado lá dentro.

Mas foi que, de repente, a professora de artes conseguiu enxergar que aquela era uma oportunidade única em sua vida nesta vida. E que talvez não viesse a se repetir. Então, resolveu entrar no templo e visitar as clausuras. E teve uma regressão a uma vida passada de forma espontânea, na qual enxergou a si própria como um monge que viveu naquele tempo. Num insight, viu que o claustro antes era um jardim cheio de rosas, com borboletas e passarinhos. Emocionou-se e agradeceu aquele momento orando por todos os monges.


Para mim, os sonhos são valiosos e podem elucidar muitas situações, conflitos, vivências. Também são veículos de nos conectar com o EU interior. E muitas vezes, podem ser usados como ‘passaportes para outras vidas’. Como o da professora. Aos meus, dou relevante importância e deles muitas vezes extraio bastante do que escrevo. No quarto, na mesinha junto ao abajur, há um bloco em lugar cativo e uma caneta a postos à espera de um bom sonho.

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora http://www.jornalagora.com.br/ - 11 julho de 2010

domingo, 18 de julho de 2010

Domingo tem cara de domingo

Quem inventou o domingo? Por fundamentação bíblica e etimológica, o domingo é considerado o primeiro dia da semana. Dia de oração e de descanso para a maioria dos cristãos e povos de todo o mundo.


Mas para mim domingo é só o dia de permissão sem grandes explicações; um dia que tem cara de domingo e ponto final. Pode ter o mesmo sol, a mesma lua. Pode ser na mesma cidade, no mesmo bairro, na mesma casa. Mas, dá pra se perceber que é domingo porque tudo fica mais preguiçoso e a vida ganha ar de mormaço... Pelas falas pausadas de todo mundo, pelos movimentos mais lentos...


Desde criança adoro domingos. Domingos bem cedinho, quando o dia começa a clarear e todos ainda dormem. Domingos matinais nos quais o café da manhã tem mais aroma e sabor e é sorvido mais lentamente, com biscoitos doces. Com café que quase esfria na caneca por causa do displicente folhear da revista que chegou durante a semana, e que ainda estava no plástico à espera do domingo chegar.


É dia de atualizar blog, Facebook, Twitter, Orkut, Windows Live... Ou dia de ficar até mais tarde de pijama com cabelo por pentear. De deixar cama desfeita, louça na pia. É dia de não se irritar com coisa alguma. Único para tomar chimarrão acompanhado de biscoitinhos salgados. É dia de cheiro de churrasco na vizinhança. Ou fila na porta de restaurante. Dia pra comer pipoca, de ir ao cinema. De passear demoradamente com o cachorro. De curtir a família. De se juntar aos amigos. De sentar no parque. De observar os outros. De se deixar observar pelos outros...



Se pela Bíblia o domingo é considerado o primeiro dia da semana, pra mim é o último. Aquele que põe um ponto final em uma semana de agenda esgarçada, de horas espremidas, de tráfego lento, de alimentação desleixada...


Domingo é dia de não se importar com coisas sérias, ou melhor, não pensar em coisas sérias. Por isso, recebo o domingo com alma de criança. Às vezes, já no sábado em sua derradeira despedida a menos de um minuto para a meia-noite.



Mas como tudo na vida –bom e o ruim - em um momento acaba, o domingo também se vai. Pra mim logo após o almoço, quando então sou obrigada a pensar na semana que se inicia. Talvez seja por isso que eu retarde ao máximo momento de almoçar. E o faça quando todos já estão pensando no lanche do final de tarde.


Para os meus domingos, permito-me tudo. Mas recuso-me ver tevê.



Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora http://www.jornalagora.com.br/

domingo, 4 de julho de 2010

O som do silêncio



Você já esteve no centro de um dia no qual tudo o que queria era ficar quieto? Em silêncio? Em um dia no qual queria que o mundo fizesse silêncio? Que as buzinas não tocassem? Que as pessoas não falassem alto demais, que o som da tevê não fosse gritante e estridente? Um dia no qual tudo o que queria era escutar o som do silêncio?
O silêncio tem som. É verdade. E seu som nos diz muitas coisas. É só ficarmos atentos.
De repente, fui invadida por uma enorme vontade de ampliar o horizonte do meu silêncio escutando a sonoridade mansa de Diane Krall, sua voz, suas músicas... E foi assim, que ele – o silêncio -, se transformou num fundo musical na última quarta-feira, através da música "When I look in your eyes”.
Peguei no armário o CD dela, com certeza lançado há quase uma década. O que fui buscar, se o que queria era o silêncio? Lembranças? Refúgio em sua melodia? Seria esse um sintoma de saudosismo?
Quantas perguntas fiz a mim mesma depois que o relógio passou da meia-noite! O silêncio aguçou meus questionamentos... Ah, sempre ele – o silêncio que volta e meia me toma de assalto e ordena: “fica quieta!” Ou que me dá ímpetos de sugerir aos outros: “baixem o tom, baixem o som, escutem o silêncio interior...!”
Lembro-me de mim como uma criança silenciosa. Talhada assim talvez pela pouca psicologia - ou nenhuma -, da primeira professora na escola. Alegre e tagarela, assim como as outras crianças eu aguardava sua chegada, depois da sineta bater. Distraí-me ou me empolguei e não vi quando ela entrou, postando-se em sua mesa. Todos calaram, mas eu continuava virada para trás conversando com a amiguinha. Foi quando a escutei dizer meu nome em tom bastante alto, seguido pelas palavras: “Cale a boca. Sua voz é horrível!”.
Passei o resto daquele ano calada. E nos muitos que se seguiram, economizei as palavras o máximo que pude. Até compreender que, de nós duas, era ela quem tinha a voz horrível, pois era carregada de ressentimento com a vida.
Mas acho que escutar Diana não teve por um motivo especial. Afinal, precisa mesmo de um para ouvi-la? Ela, por si só, já se faz especial. Sua voz sempre me pareceu preguiçosa, letárgica. E, por isso mesmo, capaz de me arrastar por um fio condutor imperceptível a novos caminhos silenciosos toda vez que a escuto. Como se o seu tom tivesse o dom me conectar ao silenciário.

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora www.jornalagora.com.br

domingo, 13 de junho de 2010

Flutuando no azul da meia-noite


Por vários dias escutei a mesma música: "Walking in the Air" (composição de Howard Blake para a versão cinematográfica de "The Snowman", livro infantil do autor inglês Raymond Briggs, publicado em 1978. Em 1982, a publicação foi transformada em desenho animado).
Não é uma canção nova e eu já a conhecia, embora uma pesquisa tenha me mostrado um novo arranjo na voz da cantora Chloe Agnew, cantora irlandesa que ficou famosa por sua participação no grupo musical Celtic Woman. Baixei os dois - o original e a adaptação.
Mas por mais que a ouvisse, não me fartava. A sisma se deu depois de um sonho. De um sonho, não. De uma noite dormida pela metade, na qual acordei pelo som interno da música. Ela estava na minha cabeça e havia sido recuperada em minha memória há pelo menos quase cinco anos. O engraçado é que nesse tempo decorrido, eu nunca mais a havia escutado e até não possuo mais o CD.


Na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz foi procurá-la na internet. Achei inúmeras versões, em inúmeras vozes, de inúmeros jeitos. Mas eu queria a original. Ou pelo menos, igual a do meu CD perdido.
"Acho que tua alma tinha necessidade de escutá-la", disse-me minha amiga, rindo quando lhe contei minha insaciabilidade.
Passou-se mais de uma semana e minha alma continua querendo ouvi-la. Curiosa, fui procurar a tradução da letra. E entendi por quê.


"Estamos caminhando no ar / Estamos flutuando no céu enluarado / As pessoas lá embaixo dormem enquanto voamos... / Passeando no azul da meia-noite / Através do mundo / As vilas passam como se fossem árvores / Os rios e as colinas / A floresta e os riachos / As crianças de boca aberta contemplam / Pegas de surpresa / Ninguém lá embaixo acredita no que está vendo / Estamos surfando no ar / Estamos nadando no céu congelado / Estamos passando acima das montanhas congeladas / De repente baixamos até o fundo de oceano / Despertando o monstro poderoso de seu sono / Estamos caminhando no ar / Flutuamos no céu da meia-noite / E quem nos vê, cumprimenta-nos enquanto voamos..."

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora
http://www.jornalagora.com.br/site/index.php?caderno=48&noticia=82725

sábado, 12 de junho de 2010

Encontros

Desço de um só fôlego a escadaria de um prédio histórico apressada, corro até virar a esquina e alcançar o ponto de ônibus e... Gracias! Ele ainda não passou. Mas os minutos se tornam exasperantes quando percebo o dia virar noite rapidamente, enquanto aguardo, impaciente, pela chegada do coletivo. E quando ele chega... Argh!, está superlotado! Penso no quão torturante vai ser a viagem. Sim, porque deslocamento em cidade grande às vezes assume o tempo de uma viagem curta entre cidades vizinhas.



E, aí quando menos espero, conheço alguém simpático e solícito que torna mais leve e suportável o ‘enlatamento’. E com o qual travo um breve, mas agradável contato.
A vida é cheia de encontros. Encontros românticos. Encontros agendados. Encontros aguardados com ansiedade. Encontros breves. Encontros alegres ou dolorosos. Encontros chatos e com jeito de dever a ser cumprido. Encontros por obrigação. Encontros para tratar de negócios. Encontros para breves despedidas ou revestidos de eternidade. Mas também de encontros casuais, sem dia e hora marcados. E encontros deliciosamente inesperados entre desconhecidos.


Refletindo sobre esses encontros imprevistos que possuem a brevidade de 30 e poucos minutos, dou-me conta de que seus rastros deixam lembranças por vários dias.
Encontros casuais acontecem a todo o momento e por isso, são leves e despidos de compromissos. Conhecemos pessoas com as quais interagimos, trocamos experiências, confidências, opiniões e até breves piadas, mas que sabemos que a chance é uma em um milhão de as encontrarmos novamente.

Mesmo assim, essa mutação não tira o entusiasmo da troca. Das conversas breves que até mesmo revelam afinidades. Entretanto, em sua grande maioria, não há trocas de contatos. Como se naquele momento a gente apostasse no acaso ou fingisse morar numa pequena cidade interiorana onde todos se conhecem por nome, sobrenome, e onde os segredos estão estendidos em varais ou debruçados nas janelas. 
E ao fim de uma breve jornada, as despedidas são tão cordiais quantos o primeiro olhar, o primeiro sorriso, a primeira gentileza. No aceno corriqueiro, fica tacitamente explícita a tenuidade do anonimato.

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora www.jornalagora.com.br

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Assombro

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O que me assombra? No momento em que escrevo é esta quarta-feira. Exatamente por já ser ela a metade da semana, por já ser metade do ano, por ter decorrido mais da metade do tempo que tenho pra viver. Em suma, metade de tudo...

Escrevi “tempo pra viver?” Será que dá para brincar com isso, deixando Deus à margem e todas as leis que regem o universo criado por ele, tomando as rédeas da contagem dos dias que ainda me faltam?

A questão é: se isso fosse possível para mim e para todos, o que faríamos exatamente? Qual seria a nossa primeira reação? Prazer por termos poder para ampliarmos o prazo? Uma melhor consciência de como aproveitarmos melhor o tempo que nos resta para fazer coisas úteis, boas e realmente importantes?

 

assombro - cronica ilustração

O tempo passa mais depressa que nossas expectativas em relação às etapas da vida. E das quais não conseguimos fugir por mais que tentemos burlar a receita prescrita: nascimento, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice e morte.

Embora na juventude possamos pensar no tempo como algo infinito, a verdade é que ele é uma viagem sem volta a cada segundo.

Alias, pensando melhor, tudo na vida tem apenas tickets de partidas sem regressos. Mesmo quando achamos que podemos voltar atrás para nos desculpar com quem magoamos; ou quando tentamos retomar a atenção que negligenciamos quando envoltos no emaranhado das atribuições cotidianas... Quando não encontramos tempo para ir ao encontro do nosso melhor amigo. Quando deixamos tudo para o outro dia, e deste dia para o outro, parando apenas quando sacudidos pelo inesperado – não tão inesperado assim – de que ele já não está mais lá para nos receber com o seu abraço afetuoso, com suas palavras confortadoras, com seu sorriso largo!

 

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O tempo não perdoa nem rebobina o filme para rostos bonitos e corpos esculturais, por mais que a medicina estética avance. Essa inconformidade na aceitação da passagem do tempo só gera arremedos de belezas de outrora, que poderiam continuar sendo belos somente sob um novo olhar.

Rugas e linhas de expressão podem tornar rostos tão belos quanto os de vinte e poucos anos, porque são talhadas pelas experiências de vida e sabedoria.

Quem não repara nos excessos de botox em lábios engraçadamente revirados; nas bochechas salientes, redondas e rosadas quase prestes a explodirem? Ou não olha de soslaio para os seios absurdamente empinados e siliconizados da senhora com mais de 70, na fila do caixa no supermercado?

Na verdade, meu maior assombro da semana foi chegar ao restaurante ontem e saber que a gerente, 27 anos e mãe de um bebê com seis meses, havia morrido no início da manhã, saindo de casa para o trabalho, de repente... Do coração...

E ela nem estava na metade do tempo de vida que poderia viver.

Rosane Leiria Ávila

Publicado no JORNAL AGORA

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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Os pombos



Enquanto fazia um lanche no horário em que todos – ou quase todos – almoçam, sentada em um banco de uma praça, de repente minha dispersão foi interrompida por três pombos.
Como quem não quer nada, eles lentamente começaram a se aproximar. Ainda que desconfiados, a curiosidade deles parecia ser maior do que o receio de uma reação hostil de minha parte. E o interesse também. Afinal, fosse pelo cheiro do lanche ou pelas íntimas migalhas caídas no chão, o fato é eles resolveram apostar, mesmo sendo eu um ser estranho.
Inicialmente, não mexi um dedo nem fiz nenhum gesto amigável. De propósito, lógico, no intuito de instigá-los e, dessa forma, melhor observar seus comportamentos. Depois, devagar fui esticando as pernas. Um, que já estava mais próximo, recuou estrategicamente. E, sabem? Olhou diretamente para mim. Sei que posso parecer doida, visionária, sei lá... Ainda mais porque foi diretamente para os meus olhos.
Ali ficou quieto, apenas piscando e esperando um gesto meu. Nada. Eu me divertia com o fato. Com a minha aparente inércia, os outros começaram a se aproximar, devagar.
Pelo visto, o que estava mais próximo e me observava era o chefe. E a um sinal seu, os outros se aproximariam ou se afastariam.
Resolvi fechar os olhos para ver o panorama mudar quando os abrisse. Estava tão certa de que isso mudaria, que quase apostei intimamente. Certa? Claro que sim! Agora, ele, o chefe, estava no banco ao meu lado. E os outros dois praticamente nos meus pés.
Deslizei, o mais devagar que pude, as migalhas que estavam no guardanapo. O pombo no banco começou a comê-los. Depois, ao invés de ir embora, aproximou-se mais. Ora, pensei, teria ele visto em raio-X que em minha bolsa havia outras coisas que o interessavam?
O tempo havia se esgotado e eu precisava retornar. Levantei-me no mesmo instante em que ele voou. Mas, pelo visto, não queria apenas as migalhas do meu lanche, pois começou a caminhar à minha frente no passeio de areia da praça em direção à calçada, simulando um bailado como se estivesse fazendo um convite a uma estranha amizade.
Só levantou voo quando acelerei o passo, acenando para o ônibus que se aproximava do meio fio.
Voltei à mesma praça e ao mesmo banco no dia seguinte. Desta vez, com um pacote de guloseimas especialmente atraentes para pombos.
Foi só sentar e aguardar poucos minutos de olhos fechados, pois tinha certeza de que quando os abrisse, ele estaria lá.
E estava. Agora, de segundas as sextas, temos encontros agendados.
Rosane Leiria Ávila
Jornal Agora



Nossos sonhos



Uma amiga revelou-me que não sonha. Nunca sonha. Bobagem. Ela sonha só que não consegue se lembrar depois. Ela também ficou escandalizada quando lhe devolvi em confidência: “Eu sonho todas as noites e em muitas, mais de um sonho. Também costumo anotá-los e alguns acabam até virando crônicas”.
Minha mãe, por exemplo, sempre gostou de decifrar sonhos. Seus e os das filhas, das netas... Ou pelo menos tentar. Por conta disso, quando pequena ficava fascinada achando que ela podia olhar nossas cabeças enquanto dormíamos, como uma bruxa olha sua bola de cristal.
Sonhar é muito bom mas também muito íntimo. Não podemos sair por aí contando nossos sonhos. Segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud  (1856 – 1939), à medida em que o ego adormece, afrouxavam-se os laços do sensor liberando o acesso aos nossos impulsos mais reprimidos e linguagens inconfessas.  Dizia também que sempre costumamos sonhar entre as 6h e às 8h, de três a cinco vezes, e praticamente de 90 em 90 minutos. Concordo com a quantidade, mas juro que os meus começam tão logo adormeço.
Já o Carl Jung (1885 -1960), que estudou os sonhos por mais de dez anos, concluiu que eles são uma porta de acesso a outras dimensões. Todos os personagens, emoções e situações remetem a uma jornada onírica como ser.
Jung trabalhou inicialmente com Freud na pesquisa dos sonhos. Um dia, exaustos, adormeceram e sonharam. Foi quando descobriram que o sonho está dividido em cinco partes: a RAM, a REM, a RIM, a ROM e a RUM. Depois de algum tempo, eles se dividiram em suas interpretações ao sonho.
Os sonhos tentaram ser interpretados já na antiga Grécia. Em tempos mais recentes, a psicoterapia tem três correntes: Freud, Yung e Erich Fromm. Este último defende que questões econômicas influem na capacidade dos indivíduos sonharem. E define: "Nosso Eu, como ser social, e a sociedade influenciando no meu sonhar".
Eu, particularmente, aceito e gosto da definição de sonho pelo Xamanismo: "Os nossos sonhos pertencem a um tempo e a um espaço". Filosofia de vida muito antiga, seus os ensinamentos baseiam-se na observação da natureza e seus sinais: sol, lua, terra, água, fogo, ar, animais, plantas, ventos, ciclos, enquanto que seus objetivos básicos são reconectar o ser com sua sabedoria interior.  
Para mim, está perfeito.
Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora
www.jornalagora.com.br

domingo, 2 de maio de 2010

Juriti, o cão-carteiro

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Ele chegou à casa da fazenda levado por um empregado que o encontrou, pequenininho, sozinho e perdido na estrada de terra batida. E longe, muito longe de qualquer civilização.
Tão pequeno que ainda mamava. E como não tinha mãe, foi criado pelo dono da casa com a mamadeira que havia ficado guardada num canto do armário, quase mofada, depois que a filha cresceu.
A vida que tinha iniciado de forma azarada, sorriu para Juriti. Sim, ele recebeu esse nome meio estranho, não sabia tirado de onde. Porque, mesmo sem o leite materno, sorvia com sofreguidão a mamadeira repleta de leite recém tirado das vacas ou das cabras.
Juriti crescia mais rápido que o tempo, e em poucos meses se tornou um cão alto, com pêlo duro e branco e magníficas orelhas pretas, o que lhe conferia um charme todo especial.
Também logo em seus primeiros dias na casa despertou a atenção de todos para sua inteligência: não havia coisa que não aprendesse rapidamente. E, muitas vezes, apenas com um ou dois ensinamentos.
Tomou gosto por tudo – corria atrás das galinhas por puro divertimento, pois era de boa índole e nem lhe passava pela cabeça machucar qualquer uma delas. Os coelhos, quando saíam das tocas, também eram motivo de correrias e brincadeiras de Juriti. Isso sem falar que simpatizava especialmente com aquelas que lhes forneceram o substancioso leite que o criou forte e belo: as vacas.

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E era com elas que Juruti passava longos períodos no campo, ajudando na hora de salvaguardá-las dos perigos à noite, assim como as cabras. Com uma performance tão amigável e inteligente, Juriti foi um dia convidado a sair na charrete da casa que fazia às vezes de correio ou transporte de mercadorias.
Pois então! Foi através desses passeios de charrete que Juriti ‘conheceu o mundo’ e ganhou o gosto de se afastar por longas horas da casa da fazenda. Passou a sumir um dia, para voltar no seguinte. Depois, por dois dias, três... No início, todos se preocuparam. Mas como ele sempre voltava, relaxaram.
Bem, relaxaram não é o termo mais apropriado. Na verdade, tiveram a feliz ideia de o transformarem num ‘cão-correio’. Naquela época – ah, esqueci de dizer antes que a história se passou há uns 70 anos e foi resgatada na memória de minha mãe -, as coisas eram mais complicadas e uma casa ficava distante de outra várias léguas. Tudo era longíssimo. Mas bastava dizerem pra ele: “vai” e ele ia, atravessando campos e campos...
Então, Juriti passou a trabalhar também como entregador de bilhetes. Fizeram-lhe, sob medida, uma carteirinha de couro presa a uma coleira. Nela, tomaram o hábito de uma vez por semana escrever aos amigos na vizinhança.
E Juriti, unindo o útil ao agradável, estufava-se de orgulho com tão importante missão. As semanas e meses se passavam entre entregas para lá, respostas para cá. Todos elogiavam o trabalho do cão-carteiro.
Todos, não. Uma alma virada do avesso resolveu fazer uma brincadeira de mau gosto e interceptar uma entrega. No meio do caminho, atraiu a atenção do cão, fez-lhe um afago, deu-lhe um biscoito e substituiu o afável bilhete que ele levava por outro, repleto de palavrões.
Sem nada desconfiar, Juriti seguiu seu caminho até a casa onde a correspondência se destinava. Mas, qual não foi sua surpresa ao ver, minutos após a entrega, esta ser lida aos gritos, ao invés das amabilidades tão costumeiras. A dona da casa chamou a filha, que chamou o irmão, que chamou o pai. O conteúdo do bilhete obsceno deixou todos chocados. E eles decidiram escrever outro em troca, cortando os laços de amizade com seus tutores. 
Juriti sabia que algo horrível havia acontecido. Cabisbaixo, voltou para sua casa levando o dobro do tempo no percurso, tamanho era o seu abatimento. A brincadeira de mau gosto pôs fim à sua carreira de mensageiro e a ele nunca mais foi confiada missão semelhante.
Até morrer, alguns anos mais tarde, Juriti não compreendeu o quê havia feito para ter seu trabalho suspenso.
Rosane L. Ávila

http://mulher-jornalagora.blogspot.com/

Twitter – rosaneleiria

domingo, 25 de abril de 2010

Nas Nuvens

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Quando pequena, achava que ia ver Deus nas nuvens. Cresci e continuei me encantando com elas. E, no fundo, infantilmente, sempre procurando nelas imagens à semelhança da figura de um velho e bonachão senhor que nos acostumamos a ter Dele.
Tanto, que um dos meus passatempos prediletos, ou melhor, ócio religioso, é me perder na contemplação do azul do céu, admirando as nuvens que mudam rapidamente formando figuras desenhadas por minha imaginação.
Na espreguiçadeira, herança precoce pela morte de meu pai, muitas tardes de verão me espalhei admirando as nuvens. Da infância à adolescência, colecionei figuras e sensações com as cores do céu e das nuvens. Nas mais variadas nuances – com a luminosidade de dias claros e alegres, ou no acinzentado sinistro dos prenúncios de temporais.
Cheguei até mesmo ao ápice da infantilidade de acreditar que elas eram macias, e que ao toque dos meus dedos me proporcionariam a sensação de leveza que advém de uma bola de algodão.
POESIE-POESIA-POESIA
Até hoje reservo um momento do meu dia ou da noite para olhar para o céu, não importando se estou indo para a cama, caminhando pela rua, espichando os olhos pela janela do carro ou daquela pequenininha de avião. Mas nesse último posto observatório, uma pontinha de grandeza toma conta de mim no sonho realizado: afinal, lá estou eu finalmente sentada nas nuvens!
Ou então, quando já no portão do prédio subo correndo os dois lances de escadas para enfiar na bolsa, às pressas, a câmera digital. Sei que pela rua encontrarei ‘muitos céus e muitas nuvens’. E que vou querer guardá-las para quase todo o sempre no meu momento nada eterno. Com flash ou sem, tipo portrait ou não, vou captando imagens de todo o jeito, de toda cor, em qualquer lugar, em qualquer céu.
sky
O Aurélio me indica mais de meia dúzia delas (alta, ardente, atômica, baixa, estelar, média, noctilucente, derramadeira). Ou ainda as nuvens de estrelas e a Nuvem de Magalhães (duas nuvens estelares visíveis a olho nu e próximas ao Pólo Sul, descobertas pelo navegador português Fernão de Magalhães, 1480-1521), enquanto a canção “Sky blue Sky” (Céu, azul Céu), da banda Wilco (country alternativo) vai embalando o emaranhado de palavras desta crônica tão simplesinha e sem um final aparentemente conclusivo.
Mas, como muitas coisas que aparentam ser algo que não são, fica a suspeita de que talvez eu já tenha pulado do útero de minha mãe olhando as nuvens pela janela de uma maternidade, em noite estrelada de um quase verão.
Rosane Leiria Ávila
Jornal Agora (www.jornalagora.com.br)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Responsabilidade: moral ou social?



Na dúvida, escolha os dois. Palavra simples e corriqueira - mas muitas vezes de difícil assimilação em seu sentido amplo, a responsabilidade pode ser dividida em duas situações: moral e social. Na moral traduz a situação de um agente consciente com relação aos atos que ele pratica voluntariamente; ou em seu inverso - na obrigação de um agente inconseqüente de reparar o mal que se causou a outros.
Já no que diz respeito à responsabilidade social, segundo o Livro Verde da Comissão Europeia, é um conceito no qual as empresas decidem, voluntariamente, contribuir para uma sociedade mais justa e para um ambiente mais limpo. Mais claramente, o conceito de responsabilidade social deve ser entendido em dois níveis, segundo Carlos Cabral-Cardoso, autor do livro “Manual de Gestão de Pessoas e do Capital Humano”: interno e externo.
O nível interno diz respeito aos trabalhadores e a todas as partes interessadas e afetadas pela empresa e que, por seu turno, podem influenciar os seus resultados. Já o nível externo leva em conta as consequências das ações de uma organização sobre os seus componentes externos, nomeadamente, o ambiente, os seus parceiros de negócio e meio envolvente.
Juntar lixo seco e aguardar, com paciência o dia da coleta; comer bala e não jogar aquele ínfimo papelzinho no chão; levar sacolas de tecido às compras ao invés de voltar para casa carregado de sacos plásticos; escolher nas prateleiras dos supermercados produtos concentrados cujas embalagens são menores; ou ainda, dar preferência aos biodegradáveis (e de quebra, que não sejam testados em animais) são atitudes simples e ao alcance de qualquer um.

Qualquer um?! Sim. E em qualquer nível social. Para quem assiste o quadro da Band, “Esse lixo é teu: lugar de lixo é no lixo”, aos domingos no mesmo horário do Fantástico, vê que isso é possível. E viável. Basta apenas um pouco de boa vontade e o parco entendimento de que aquilo de ruim que fazemos, seja aos outros ou ao meio ambiente, volta-se para nós se tornando o nosso algoz, ou seja, de vítima passa a ser agressor. Veja os exemplos das enchentes e caos nas grandes cidades após algumas horas de chuva.
Nos negócios, a responsabilidade social se tornou um dos fatores de competitividade. Se no passado o que identificava uma empresa competitiva era basicamente o preço de seus produtos, hoje se sabe que investir no permanente aperfeiçoamento das relações com clientes, empregados, parceiros, colaboradores e fornecedores, no fabrico de produtos e prestações de serviços que não degradem o meio ambiente, tornou-se também um ótimo negócio. Além disso, as empresas começaram a participar do desenvolvimento da comunidade da qual fazem parte, fazendo disso um diferencial cada vez mais importante na conquista de novos consumidores ou clientes.
Pelo retorno que tudo isso propicia para o futuro do país, seja econômica, ambiental ou socialmente, é que o movimento da Responsabilidade Social Empresarial vem crescendo bastante no Brasil nos últimos tempos. E quem lucra é a sociedade. (Com informações do Instituto Ethos).

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora - caderno Mulher Interativa 

Dual


Um... Dois... Um... Dois... Os dedos tamborilavam impacientes na mesa, enquanto a cabeça saía solta pelo mundo. Queria fazer tanta coisa, justamente agora que se sentia no fim...
- Como assim, no fim? Indagou-lhe a amiga sem entender como alguém com 38 anos, bonita, vida confortável, podia se sentir acabada. Ou partindo desta para uma melhor. Alias, seria melhor mesmo? Afinal, quase todos são pecadores e o destino certo é o Inferno.
- Claro, sua boba. O Inferno não é num lugar longínquo como sempre a Igreja nos quis fazer acreditar. É aqui mesmo, na Terra. Nesta terra que meus olhos ardem de ver, retrucou.
Estava enjoada do noticiário diário: traições, guerras, bombas, terremotos, assassinatos, abusos de crianças, violência contra os animais, poluição, destruição, degradação do meio ambiente, maracutaias e sacanagens políticas... Sentia náuseas por causa de tanta coisa sem sentido... O medo e a incerteza batendo todo dia no vidro do carro quando saía...
- Ah, não. Você só está olhando para coisas ruins. O Planeta é mais. É luz, é beleza, é perfeito nos detalhes da natureza. Caprichoso no som das florestas ou no murmúrio das ondas dos oceanos argumentou a outra.
Mas ela fincou pé na assertiva.
- As florestas estão sendo derrubadas, os animais silvestres mortos ou traficados, as madeireiras ilegais deixam grandes extensões áridas na Amazônia. O governo agora quer fazer a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu que ameaça afetar o rio Xingú e destruir grandes territórios dos índios caiapós e ribeirinhos. Será que é necessário como ele diz ser, mesmo? De verdade? Você sabe que a verdade não chega até nós, pobres eleitores e cidadãos comuns. Fica desfigurada pelos caminhos tortuosos e manipulados que percorre. 

Meu Deus, quanto pessimismo! O que você queria? A população dobrou nas últimas três décadas. Então, são necessários investimentos para grandes massas populacionais, retrucou a amiga.
Um... Dois... Três... Um... Dois... Três... Agora seus dedos estavam mais nervosos ainda. Encarou a outra com medo de se descontrolar e, a qualquer instante, pular no seu pescoço.
Mas, ao invés disso, desviou o olhar. E foi então que viu sua imagem refletida na vitrine da mega loja no passeio do shopping. Ela estava sentada numa dessas cafeterias no meio dos corredores. Sentiu estranheza e um profundo estremecimento. Aquela não era ela. A imagem era de uma senhora de 80 ou mais anos, já curvada pelo tempo. Cabelos brancos, rugas na face, mãos deformadas pela artrite.
Estendeu o olhar e procurou a imagem da amiga sentada à sua frente. De novo, outro susto. Aquela sim era ela. Estaria ficando louca?
Olhou para frente, buscou o olhar da amiga e lhe suplicou que olhasse para a vitrine.
- O que você vê? O que vê? - perguntou aflita.
Então, depois de infindáveis instantes a amiga voltou a cabeça lentamente para a direção dela e lhe disse:
- Eu vi o tempo.

Rosane Leiria Ávila 
Publicada no Jornal Agora - Mulher Interativa

domingo, 4 de abril de 2010

Falar ou silenciar?


Quando falar e quando calar? Saber falar é um dom – dizem, e calar, sabedoria. Mas, o mesmo vale para o sentido inverso? Em que momento falar é sábio e silenciar, uma virtude?

Refleti sobre essa questão durante um almoço. Confesso que o ambiente zen do restaurante vegetariano e a música suave de fundo ajudaram minha reflexão, se é que não foram responsáveis por ela. O fato é que me veio à mente a declaração de minha fisioterapeuta uma hora antes. Ela contou que durante uma massagem nas costas e coluna cervical de uma paciente, repentinamente encontrou um nódulo de tamanho significativo e com muita pouca chance de ser lipoma.

Claro que ela alertou a moça para a descoberta, mas quando perguntada por esta que tipo de especialista procurar, faltou-lhe coragem de indicar logo um oncologista e acabou aconselhando-a a ir a um clínico geral.
- Não tive coragem de dizer a ela que procurasse o oncologista para não assustá-la, completou.
Concluímos a conversa falando no medo que às vezes se tem de descobrir a verdade. 

Também me veio à mente o programa “Saia Justa”, do GNT, assistido na noite anterior no qual as quatro apresentadoras – Mônica Waldvogel, Betty Lago, Márcia Tiburi e Maitê Proença liam e-mails enviados por telespectadoras. Em um deles uma moça perguntava se devia acabar o relacionamento com o namorado que gostava de praticar suingue (prática sexual que envolve dois ou mais casais).

A melhor resposta não foi dada por elas e saiu de perto de mim: “Se isso não incomoda a moça e se ela gosta, que continue. Mas é difícil pensar que seja assim, senão ela não estaria em dúvida”.

Questionei se essa clareza de resposta foi por esta estar resguardada no anonimato... Bem, o fato é que as apresentadoras do programa engasgaram - Bete se declarou bastante irritada, Maitê falou sem clareza e Mônica foi a que mostrou uma posição mais razoável para aquele momento, embora não tenha dado uma resposta concreta à telespectadora.

Sobre isso, de novo voltei a questionar em como é complicado ser sincero e falar o que realmente se pensa – já que a sinceridade muitas vezes é tomada por rispidez ou falta de educação. Talvez a resposta que uma delas tivesse vontade de dar tenha ficado entalada na garganta, engessada pelo hábito de que já nos acostumamos (ou fomos educados para assim o agirmos) a tomar um atalho cômodo para que não causemos mágoas.

No fundo, acredito que saber quando falar e quando calar é uma questão que envolve o nosso aprendizado na vida, o nosso crescimento e a nossa evolução. Que chega com o tempo e com a maturidade.

Rosane Leiria Ávila
Publicado no Jornal Agora (www.jornalagora.com.br) Mulher Interativa (http://mulher-jornalagora.blogspot.com)

sábado, 20 de março de 2010

Despojamento




Tenho alergia a carregar bolsas, sacolas, pacotes ou qualquer coisa que se pareça com elas. Muitas vezes, deixo de comprar só para não ter que carregar. Mas, em certas ocasiões essa mania me atrapalha bastante, principalmente quando, por exemplo, desisto de levar comigo o livro do momento. E, depois, amargurar várias horas em recepções folheando velhas revistas ou assistindo, a contragosto, programas banais de tevê.
Essa faceta já fez arrepender-me mortalmente por não ter comprado uma calça linda, botas maravilhosas, a blusa ou o vestido remarcados com preços imperdíveis. Argh! Nessas horas chego a me odiar por gostar de andar leve, de ter as mãos livres, de não ter que me preocupar em chamar a atenção para ser roubada ou assaltada... De não correr o risco de esquecer alguma coisa em algum lugar. De não sobrecarregar minha coluna com pesos de coisas supérfluas. Às vezes, nem tão supérfluas assim...
E prometo a mim mesma, parada diante de uma loja cuja vitrine exibe modelos incríveis, que vou voltar no dia seguinte preparada psicologicamente para comprar e carregar. Mas não volto. Nunca volto. Porque na maioria das vezes esqueço o nome do estabelecimento, da rua e me dá uma amnésia proposital do bairro por onde andei.
Mas, na verdade, a maior motivação que encontro nessa atitude é o prazer que sinto em caminhar longas distâncias, e fazer isso de forma despreocupada e saudável.  Como naquela famosa música de Caetano “Sem lenço e sem documento”.  O carro fica esquecido na garagem semanas a fio e, na hora da troca, a quilometragem rodada surpreende a revenda.
O mais curioso é que me sinto tão bem, ou melhor, do que se tivesse comprado (claro que o saldo bancário agradece). Mas reflito se isso não ocorre também porque me habituei a não decidir nada sem pensar muito. Sem analisar prós e contras. Sem questionar a necessidade real de adquirir determinado objeto ou vestuário ou sei lá mais o quê. E no quanto aquilo poderia me fazer sentir melhor do que me sinto no momento, ou me proporcionar prazer. No fundo, também porque sei que prazer e alegria independem de bens de consumo. Eles só mascaram a tal felicidade.
Mas... Tudo isso se inverte quando respiro o divino odor que exala dos livros. Nas megastores não consigo controlar o impulso consumista. E nessas ocasiões, nem mesmo o ralo saldo de final de mês ou tampouco a ojeriza de carregar pacotes me detêm. Viro uma consumidora voraz. Acabo voltando para casa exausta, cheia de pacotes e com a alegria de uma criança em noite de natal. Mas como sou chata, isso acaba me causando  angústia: enquanto minha pequena biblioteca cresce, esvaziam-se os pretendentes às obras...
E eu não escrevi antes que sofro tudo por antecipação?
Rosane Leiria Ávila

Crônica publicada no Mulher Interativa (http://mulher-jornalagora.blogspot.com/)