sábado, 20 de março de 2010

Despojamento




Tenho alergia a carregar bolsas, sacolas, pacotes ou qualquer coisa que se pareça com elas. Muitas vezes, deixo de comprar só para não ter que carregar. Mas, em certas ocasiões essa mania me atrapalha bastante, principalmente quando, por exemplo, desisto de levar comigo o livro do momento. E, depois, amargurar várias horas em recepções folheando velhas revistas ou assistindo, a contragosto, programas banais de tevê.
Essa faceta já fez arrepender-me mortalmente por não ter comprado uma calça linda, botas maravilhosas, a blusa ou o vestido remarcados com preços imperdíveis. Argh! Nessas horas chego a me odiar por gostar de andar leve, de ter as mãos livres, de não ter que me preocupar em chamar a atenção para ser roubada ou assaltada... De não correr o risco de esquecer alguma coisa em algum lugar. De não sobrecarregar minha coluna com pesos de coisas supérfluas. Às vezes, nem tão supérfluas assim...
E prometo a mim mesma, parada diante de uma loja cuja vitrine exibe modelos incríveis, que vou voltar no dia seguinte preparada psicologicamente para comprar e carregar. Mas não volto. Nunca volto. Porque na maioria das vezes esqueço o nome do estabelecimento, da rua e me dá uma amnésia proposital do bairro por onde andei.
Mas, na verdade, a maior motivação que encontro nessa atitude é o prazer que sinto em caminhar longas distâncias, e fazer isso de forma despreocupada e saudável.  Como naquela famosa música de Caetano “Sem lenço e sem documento”.  O carro fica esquecido na garagem semanas a fio e, na hora da troca, a quilometragem rodada surpreende a revenda.
O mais curioso é que me sinto tão bem, ou melhor, do que se tivesse comprado (claro que o saldo bancário agradece). Mas reflito se isso não ocorre também porque me habituei a não decidir nada sem pensar muito. Sem analisar prós e contras. Sem questionar a necessidade real de adquirir determinado objeto ou vestuário ou sei lá mais o quê. E no quanto aquilo poderia me fazer sentir melhor do que me sinto no momento, ou me proporcionar prazer. No fundo, também porque sei que prazer e alegria independem de bens de consumo. Eles só mascaram a tal felicidade.
Mas... Tudo isso se inverte quando respiro o divino odor que exala dos livros. Nas megastores não consigo controlar o impulso consumista. E nessas ocasiões, nem mesmo o ralo saldo de final de mês ou tampouco a ojeriza de carregar pacotes me detêm. Viro uma consumidora voraz. Acabo voltando para casa exausta, cheia de pacotes e com a alegria de uma criança em noite de natal. Mas como sou chata, isso acaba me causando  angústia: enquanto minha pequena biblioteca cresce, esvaziam-se os pretendentes às obras...
E eu não escrevi antes que sofro tudo por antecipação?
Rosane Leiria Ávila

Crônica publicada no Mulher Interativa (http://mulher-jornalagora.blogspot.com/)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Temperança

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O artigo não era novo, mas na sala de espera de um consultório médico chamou minha atenção pelo fato de ser atemporal. Em um número da revista Bons Fluídos de 2006, a jornalista e pesquisadora Sônia Hirsch escreveu sobre temperança.

Temperança, segundo o Aurélio, é qualidade ou virtude de quem é moderado, ou de quem modera apetites e paixões; sobriedade. Também significa moderação, comedimento, temperamento, economia e parcimônia.

Pensei que temperança é o que deveria pautar a vida de todos nós. Ultimamente tenho pensado sobre o futuro da Humanidade e do nosso próprio povo. E tenho sido cética em minhas conjeturas de que não há saída, de que o mundo não vai ficar melhor e de que os homens não vão rever conceitos nem mudar costumes e ambições. Entretanto, como escrevi acima, se em cada um de nós estivesse plantada uma sementinha de temperança, viveríamos tempos melhores. Deixaríamos perspectivas de vida mais dignas, mais saudáveis e mais humanas aos adolescentes e crianças de hoje.

temperance

Temperança, quando a questão é o alimento como uma experiência diária de prazer e satisfação que precisa de temperos, não o dos vidrinhos, mas o da consciência, afirmou Sônia, é por exemplo, comer só na quantidade adequada à necessidade do momento. "Comer demais é uma das maiores burrices da vida e, além de ser um desperdício, sobrecarrega a digestão, entorpece a mente, engorda, prende o intestino e vira doença".

E penso que quando a questão é moral,temperança é não se desejar mais do que se pode usufruir; é não ter demais quando tantos têm tão pouco. Temperança é saber que podemos ser felizes com o razoável. É se contentar com um carro popular ao invés de sonhar com um modelo importado, porque ambos percorrerão as mesmas distâncias. Temperança é um estado de consciência sempre em alerta aos excessos e às vicissitudes descabidas.

A autora também citava o livro Pequenos Tratados das Grandes Virtudes, do filósofo contemporâneo André Comte-Sponville (Editora Martins Fontes): "A temperança, que é a moderação nos desejos sensuais, é também a garantia de um desfrutar mais puro ou mais pleno. É um gosto esclarecido, dominado, cultivado. Em vez de escravos, passamos a ser senhores de nossos prazeres".

O grande pensador do século XVII, Baruch Spinoza (1632-1677), diz que a temperança é um meio para a independência, assim como essa é um meio para a felicidade: "Ser temperante é poder contentar-se com pouco. Mas não é o pouco que importa: é o poder, e é o contentamento".

Rosane Leiria Ávila