Nesta semana de temperatura extremamente gélida, algo me lembrar de minha infância - ele mesmo, o frio. Resgatado por uma prática assumida em momentos de crise: a de colocar a roupa que vou vestir próxima a uma estufa para aquecê-la. É uma sensação muito agradável... Parece um carinho!
Na verdade, é um carinho. Na minha infância, o de minha mãe que, zelosa ou temerosa que eu ou minhas irmãs ficássemos doentes no inverno, tinha o costume de esquentar as roupas que vestiríamos após o banho, quando pequenas. Ou mesmo não tão pequenas, porque bastava que estivéssemos um pouco resfriadas e o velho ritual já era colocado em voga.
Não sei se ela ainda se lembra disso. Mas eu sim, e reeditei o velho costume neste inverno que, para o meu desconforto, ainda está longe do fim.
- Tem feito muito frio, até mesmo para um gaúcho, segredou-me um velho senhor dividindo comigo o estreito balcão de uma cafeteria apinhada de gente, na tarde fria da última quinta.
- Ou talvez porque a temperatura no inverno tenha se elevado e as próprias estações por vezes fiquem indefinidas, é que sintamos tanto quando voltamos aos tempos de invernais de outrora, com imagens de geadas nos campos, de sensações doídas de vento como navalha na pele, ilustrou ele a sua própria afirmação.
- Mas o frio tem o seu lado bom, retrucou uma mulher, atenta à nossa conversa de balcão. “Estamos aqui bem agasalhados, tomando um cafezinho fumegante muito gostoso. Em minha opinião, todos ficam mais elegantes no inverno. Há prazeres que o verão nos rouba”, completou.
O interlocutor olhou para ela e sua vontade de faltar com o respeito que o avanço de idade permite, quase aflorou. Mas se conteve e conseguiu lhe perguntar, entre dentes:
- A senhora olha à sua volta quando sai à rua? Percebe os que dormem nas calçadas? As crianças? Os animais? Enquanto abrigada confortavelmente em suas roupas consegue pensar naqueles que poucas têm para se cobrir? Que se vestem com trapos e farrapos? E que, além disso, também não podem tomar um café quente ou fazer uma refeição mais calórica?
A essa altura, além de nós dois, a conversa passou a interessar quem estava em volta.
A mulher ficou em silêncio, sorvendo os últimos goles de seu café. Depois, vagarosamente pousou a xícara sob o balcão, pegou as luvas dentro da bolsa e começou a vesti-las, sem pressa. Deduzi que o café já estava pago porque ela deu alguns passos em direção à saída, parando na frente dele.
- Não julgue nem acuse sem o conhecimento da verdade. Para onde o senhor vai quando sair daqui?
- Ora, vou para casa assistir tevê. Reunir-me com a família e, mais tarde, tomar uma deliciosa sopa no pão, especialidade de minha mulher. Acompanhada de um bom cabernet, é claro. Mas o que isso tem a ver com a nossa conversa?
- Quase nada... Nada mesmo. Só que daqui eu vou me encontrar e trabalhar voluntariamente com um grupo que socorre pessoas em situações de risco por causa do frio. Distribuímos roupas para o frio e para a alma. Além de café quente e lanche.
Depois disso, virou-se e saiu. Silêncio e sorrisos amarelos. Quase todos fazendo um ‘me culpa’ e pensando em suas próprias atitudes. Ou na ausência delas.
Rosane Leiria Ávila
Publicada no Jornal Agora http://www.jornalagora.com.br/- 17 de julho de 2010
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